quinta-feira

kaspar.house inc.

body snatchers & space invaders foram
abduzidos, invadidos e incorporados.
estamos, de corpos & almas, em novo casulo.



kasparhouse.blogspot.com


mas podemos voltar a qualquer não-momento.



sábado

notas falsas V

Ruína, complemento e suplemento

Memória e tradição. A visão de Benjamin sobre melancolia e ruína: o que se quer é complementar — no sentido de construir de novo o imperfeito, o passado traumático, a utopia que se perdeu — ou suplementar — retomar a ruína com o corpo do presente, fazê-la viver e transformá-la numa outra coisa, numa terceira instância (a primeira é o passado, a segundo somos nós, o presente, e a terceira, o que está por vir e ainda não é, o que iremos fazer com os destroços, a possibilidade de fazer), pergunto?

Nascemos com os mortos.

Para Silviano, o espaço da ficção contemporânea é simplesmente atópico, excessivo, suplementar. O complemento nos dá a impressão de ter em mãos alguma coisa incompleta que estaríamos completando. O suplemento não, o suplemento é algo que se acrescenta a alguma coisa que já é um todo. O suplemento, via pastiche, por exemplo, não rechaça o passado, dialoga com ele, não nega a tradição num gesto de escárnio, desprezo, ironia. O suplemento aceita o passado como tal, e a obra de arte nada mais é do que suplemento, responde. É preciso gerar formas de transgressão que não sejam as canônicas e já tradicionais da paródia, ou de uma pretensa ruptura. E uma das formas transgressoras que mais incomoda, como o elefante da música, é assumirmos o estilo do outro. Ou melhor, digo: ser um através, escrever como um através, de si e do outro — de todos os outros, que somos nós também.

A literatura é um espaço fraturado, onde circulam diferentes vozes, que são sociais. A literatura não está posta em nenhum lugar como uma essência; ela é um efeito. O que torna um texto literário? Interessa, a mim, ele diz, trabalhar nessa zona indeterminada em que se cruzam a ficção e a verdade. Antes de mais nada porque não há um campo próprio da ficção. De fato, tudo pode ser ficcionalizado. A realidade é feita de ficções.

A memória como postura ética. E, ao mesmo tempo, diz, é preciso matar as origens. A verdadeira história da literatura é uma história de ladrões, diz um deles.

O astucioso, diz Silviano, não trabalha com princípios morais, isto é, a escrita astuciosa, seja ela biográfica, memorialística ou, pura e simplesmente, ficcional não tem pudor de mexer, manobrar, manipular, inventar a história do outro, o outro, inventar a si mesma.

O filho interfere na publicação da obra de Graciliano Ramos. A sua biografia o apresenta como escritor, o seu comportamento o coloca como tutor, censor, interventor. A irmã de Nietzsche editando os escritos do irmão depois da morte dele e a partir de uma moral pequeno-burguesa que ela intuía dividir com a sociedade e que circulava por suas artérias.

Ele incorpora as primeiras sensações de Graciliano fora do cárcere. Invade o corpo frágil e animalizado, o corpo sem caráter do outro, e o faz viver através da literatura, através da memória fictícia, inspirada na vida&obra de Graciliano, mas também por meio dos textos sampleados do próprio. Quando quer usar palavras de Graciliano, faz outro tipo de incorporação: se apropria dos escritos do outro e os incorpora ao seu, em vez de mediar a voz de Graciliano através da sua. Contudo, diz, em entrevista, que “assumiu” (palavras dele) o estilo de Graciliano, e, pior ainda, o Eu do outro. É justamente por incorporar esse Eu-Graciliano, esse escrever como se, que a experiência funciona — justamente porque ele escreve com um Eu-Graciliano que não é e nem poderá ser Graciliano porque este Eu-Graciliano é um Eu-Outrem gracilianizado, um Graciliano via ele. E o estilo desse Eu será sempre, para que a experiência tenha força, vigor e sentido, e não seja uma mediunização à la Chico Xavier, um através, um como se. É porque ele não consegue nem pode (e nem quer, no meu entender) emular o estilo do outro, e sim evocá-lo, que a voz de Graciliano pode ecoar e reviver no texto do outro.

Entre o sacrifício e o jogo , entre a prisão e a transgressão, entre a submissão e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão — ali, aí, aqui, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, aí, aqui se realiza o ritual antropófago, o procedimento sampler.



[samples de: silviano piglia e matafina]


sexta-feira

notas falsas I e II

I.
Na máquina-sampler, o operador do laboratório produz o texto secreto que flui da Biblioteca de Babel. A máquina não representa uma ordem superior, sua moral é a da experiência narrativa, não há dominação, apenas a potência do discurso. Aquele que opera, aquele que narra, aquele que age, aquele que lê, aquele que interpreta está entregue aos seus próprios recursos (e aos recursos do fluxo da escrita).

É preciso fazer ressoar as vozes através da minha, mas é preciso que elas percam suas fronteiras e timbres próprios e específicos para criar uma confluência melódica que forma uma terceira voz, um mesmo e, ainda assim, novo tom.

Não há aspas, a citação não existe. As palavras são minhas. Não importa quem fala. Sou quem pode dizer o que disse. Fui eu quem escreveu, digerindo, regurgitando e nutrindo. Abro as comportas e deixo que elas, as palavras, as vozes, tomem forma, se refigurem, se transfigurem, se fortaleçam. Eles alimentam, a máquina processa, eu escrevo e monto o texto atravessando. Um corpo em disponibilidade para si e para o outro.


II.
A literatura é um tom, ele me diz. Narrar tem mais a ver com música do que com palavras. Escrever é fluir o tom da música que circula pelo laboratório e por dentro de nós.

No quarto, não são as mulheres que vão e vêm, mas um homem deitado na cama tossindo. Ponha sua mão na minha testa um momento para me dar coragem, sussurra Kafka. Eliot se curva e diz: cada palavra é um fim e um começo. E no começo está o fim, re-cita ele. Toda ação é um passo dentro do fogo.

Não significa que, daqui para frente, não haverá forma na arte, diz Beckett a Auster. Significa apenas que haverá uma nova forma, e que essa forma será de um tipo que admitirá o caos, sem tentar dizer que o caos é na verdade outra coisa. Encontrar uma forma que acomode a desordem: eis a tarefa do artista hoje.

Rancière diz, ele me diz, que a impossibilidade de delimitação entre uma noção comum e o conceito específico de uma coisa definida não é um defeito atribuível às imperfeições da língua ou atraso do conceito. “Literatura” é um desses nomes flutuantes que resistem à redução nominalista, um desses conceitos transversais que têm a propriedade de desmanchar as relações estáveis entre nomes, idéias e coisas e, junto com elas, as delimitações organizadas entre as artes, os saberes ou os modos do discurso. “Literatura” pertence a essa delimitação e a essa guerra da escrita onde fazem e se desfazem as relações entre a ordem do discurso e a ordem dos estados.

A literatura é, sem meias palavras, aquilo (um dos aquilos) que pode mover as relações, e pode nos mover. As palavras se movem, a música se move.



segunda-feira

notas falsas III

Roubar um banco.

O que é apropriação?
Ato ou efeito de apropriar(-se); Acomodação, adaptação.
Tornar seu o que é de propriedade alheia?
A etimologia começa no século XIII com um adjetivo, “próprio” (pertencente, adequado), que vem do latim “proprius”. Logo depois, “propriedade”. No século seguinte, surge “proprietário” e “apropriar”.
Mas “apropriação”, assim como “desapropriação”, só aparece em 1813.
A História através da etimologia é também uma narração e uma interpretação (e às vezes pode ilustrar muito melhor o caminho percorrido). A relação entre indivíduo e propriedade tendo como origem um adjetivo, uma qualidade individual, uma propriedade individual. A transição da sociedade medieval para a sociedade moderna passando pela incorporação, na linguagem, de seus pressupostos: o surgimento do individualismo e da burguesia modificando a visão de um poder inquestionável, a posse material considerada como um bem e não mais uma dádiva — a possibilidade de apropriação e desapropriação. “Apropriar-se” como uma possibilidade quase que democrática, ainda que como crime (mas não mais como blasfêmia).
Tornar seu o que é de propriedade alheia — o que significa roubar um banco comparado a fundar um?

Escrever é um esforço inútil de esquecer o que está escrito (nisto nunca seremos suficientemente borgeanos), me diz ele. Por isso, em literatura os roubos são como as recordações: nunca totalmente deliberados, nunca demasiadamente inocentes. As relações de propriedade estão excluídas da linguagem: podemos usar as palavras como se fossem nossas, fazê-las dizer o que queremos dizer.
O banco não é privado, digo eu, não existe como instituição.

moksa

Ontem hoje amanhã é só uma bruma nos meus olhos, alguma coisa parada a minha frente, escorrendo, escorregando pelas minhas costas.

***

“L’ important est de ne jamais desesperér.”

Isso estava escrito num affiche que eu tinha do Midnight Express.

***

Vendo uma reportagem sobre a ligação entre Deus e a Ciência. Para Einstein, matérias como a Física Quântica, Teoria do Caos, nada disso tem valor. Ele não admitia a possibilidade de que uma ciência exata possa ter o acaso como alicerce: “Deus não joga dados”, disse ele. Para Hawkins, “Deus não só joga dados como os esconde de vez de quando”.
Só se forem dados viciados.

***

Uma pessoa indecisa é uma pessoa dividida.

***

Os vários caminhos da mesma prisão não são estradas por mais longos que pareçam ser.


***

MOCSA
[Do sânscr. moksa, 'liberação'.]

1. Segundo a maioria dos sistemas filosóficos da Índia, a finalidade principal da vida humana, que é atingir um estado de perfeição, liberto de paixões e de inquietudes, resultado e função específica do conhecimento verdadeiro.

2. Na cultura hinduísta, a finalidade espiritual mais profunda do ser humano, que consiste na libertação definitiva pela alma da prisão da matéria e do ciclo de reencarnações (samsara), por meios que dependerão da linha filosófica ou religiosa em questão [Esta libertação culmina no renascimento final da alma como Brama ou brâman.]

[1997-2003]

sexta-feira

The Buenos Aires Sessions Vol.1: Três cronópios no Cronico
















Borges morou aqui perto, dizem os amigos, parece que Piglia também fica por aqui quando está na cidade. Andamos até o prédio de Borges, depois vamos a la Plazoleta Cortázar.
Eles nos deixam, se ván a la casa.

Entramos no Cronico (se houvesse um Esquizo, seria lá) e nos perdemos em nós mesmos, na ginebra com cerveza, no sorriso de incredulidade de Bernarda, a garçonete, quando pedimos más tres, nos perdemos na fumaça, no texto e no corpo e nos amores platônicos del viaje, vamos nos dissolvendo no bar, na noite, nos sorrisos das chicas, a bruma subindo com os risos e a alegria viajante (e alcóolica).

Voltamos andando, flutuando, arrastando as asas, três cronópios na madrugada de Buenos Aires.



quinta-feira

The Buenos Aires Sessions Vol.1: Dario y Maxi, todo Estado es represor





Voltamos pela Rivadavia.
Pichações políticas em todos os muros;
a consciência dos hermanos nos impressiona.
Dario y Maxi no estan solos
(são os chicos assasinados na rebelião de 2001-2002).

Todo estado es represor.
Um povo que oprime outro povo nunca será um povo livre,
nos dirá mais tarde o humanista Israel Levy.













terça-feira

trespassado pela extinção

Eu não me mexi. Fiquei observando a consumação do que me pareceu inevitável desde sempre, inescapável desde o início — conforme pensei enquanto observava e não movia um músculo sequer, uma palha mesmo, como se diz, enquanto assistia a esse espetáculo que desde que me lembre pareceu-me sempre irreversível, intransponível. Provavelmente, muito certamente até, não havia mesmo o que se pudesse fazer para conter o que se convencionou chamar, com muito mau gosto é certo, devo dizer, de destino, o que está escrito, a mão de Deus, então você apenas olhou, parado, estático, mas com a cabeça a mil, como dizem. Vejo agora nitidamente meu pai fraquejar, vejo claramente o seu cansaço, meu pai estava fatigado, sem dúvida, era possível vê-lo assim morto, estava mortinho, como se diz, dizem, e seus músculos pediam descanso, como era facilmente previsível, qualquer imbecil pode prever facilmente, sem dificuldade alguma mesmo, o que chega a ser ridículo se imaginarmos que nada foi feito nesse sentido, e isso ficou claro quando observei ainda outra vez toda a cena em minha cabeça, é ridículo imaginar que nada tenha sido feito nesse sentido, de forma a impedir que os músculos fraquejassem, e então, como disse, com meu pai cansado, estando meu pai cansadíssimo, como posso imaginar, os músculos de seu corpo, em especial os trapezóides e os deltóides, músculos do braço, justo esses músculos, como era de se supor, começaram a fraquejar, como já disse. Então estou aqui observando toda a cena, e vejo meu pai lutando contra a fraqueza e o cansaço de seus músculos, e ouço minha mãe com uma de suas estúpidas cantilinárias infinitas a assombrar os ouvidos do seu marido e do seu filho, meu pai e meu irmão, pobres idiotas, todos alocados em seus assentos de couro e respirando, convivendo com o aquecimento perfeito do jaguar de meu irmão, que sabe Deus porquê não estava ao volante. O caminhão perdeu o controle. Por alguma razão, uma razão banal certamente, o motorista perdeu o controle sobre o veículo e isso determinou a minha orfandade.

sábado

The Buenos Aires Sessions Vol.1: Santiago y El Ruiseñor



El Café Bar Ruiseñor. Andando pelas Las Heras, a caminho do caminho, esbarramos nos anos 50. A sensação é a de que entramos no túnel do tempo, realmente. Impressão de que nada mudou, ninguém mudou (sequer de roupa ou cabelo) nos últims 50 anos (e talvez mais, talvez a década seja a de 40). O garçom, viejito (siempre los encuentros com los viejos “clasicos”), usa um paletó de vendedor de amendoim de circo (ou de recepcionista de hotel antigo). Entramos para um café e un cigarrillo. A luz, ainda que deixe o lugar claro, dá a impressão de ter um filtro temporal e cria um ambiente chiaroscuro (como os desenhos de Pratt quando coloridos) que está em suspensão espaço-temporal. Miró vê tudo com olhos em sépia. Ao fundo, na parede, um quadro antigo com o escudo apagado do Independiente (o maior ganhador da Libertadores, dizem sempre).




Santiago, o garçom, fala de forma incompreensível (a princípio). É preciso acostumar-se com a música. Está no bar há pouco tempo, ficar em casa corrói o espírito, ele diz. A voz parece sair de uma caixinha perdida em algum canto esquecido da vida. Hay un tartamudeo propio del lenguage argentino que me llena de uma extraña exaltación. Un ritmo da, do, da, da, interno a las palabras, diz Gombrowicz no “Diario argentino”, escreve Piglia nas suas “Anotações sobre Macedonio” (e depois não consegue mais encontrar a nota. Yo tampoco). Uma letra contra a outra, diz Gombrowiz, escreve Piglia, pedregulhos numa lata. A lata de Santiago parece estar revestida por cortiça, no fundo do mar, transmitida por um barbante de um “telefone sem fio”. Indagamos sobre El Ruiseñor, e ele diz que es un bar centenario, que a filha do dono, persona muy buena, está na Espanha, e que o movimento não é mais como antes (o tom sempre o mesmo, lleno de melancolia). Qué hacer?, diz. Tento gravar a experiência de ouvi-lo falar, mas as pilhas não têm mais força (esquecer para lembrar — a gravação rouba a alma, dizem os índios).
Saímos. Miró esquece algo e volta. Aparentemente, Santiago não o reconhece. Voltaremos ainda duas vezes, mas não é possível saber se somos, ou não, reconhecidos.
A caixa se abre no fundo do mar e solta bolhas.

anti-tauromaquia?

2.7.5
kafka-leiris




Kafka mostrou que o que importa não é ser o matador,
o toureiro supostamente corajoso, o caçador.
Importa ser o touro, a caça, a vítima.

Não para vingá-la ou vitimizá-la, para fazê-la viver em igualdade
— fazê-la existir para além da caça; o alvo só existe enquanto tal.

Assumir o “ser menor”, encurralado, invisível em seu grito.

Esta lição INVERTE a metáfora e as analogias clássicas (e clichês)
da literatura como caçada que reforçam o domínio,
a soberba da "glória humana".

K. "acorda" o ungeziefer que nos dá o brilho vão.
Desestabiliza o domínio de Abel (sem precisar ser Caim).


quarta-feira

The Bs.As. Sessions. Vol.1: táxi



No táxi, o motorista pergunta de onde somos.
De que ciudad?
Rio? Ah, maravilloso, Rio de Janeiro es belísimo.
E que les parece Buenos Aires?
Sensacional, dizemos.
Ele arregala os olhos, realmente intrigado. Quase perplexo.
Pero..., son del Rio..., si, Buenos Aires está bien, por supuesto,
pero moran en el Rio...
E sorri. Sorrimos de volta.
Bs.As. está perfecta, es preciosa, dizemos.
Pero..., son del Rio...

Queres cambiar?, digo.
(sorriso largo, e desconfiado: que sim, ele diz)


segunda-feira

The Buenos Aires Sessions Vol.1: libreria anticuaria



Uma banca de livros antigos em la feria.
Pergunto pela edição de Ferdydurke traduzida pelo coletivo de abnegados capitaneado por Virgilio Piñera (publicada em 47, foi a primeira tradução do livro para outra língua, feita sem dicionário, direto do polonês, com Gombrowicz mal falando castellano trabalhando em conjunto com o grupo). El Viejo Librero diz que tem na libreria e me dá um cartão. Dentro do cartão está escrito: El libro que ud. busca se lo encuentra. La libreria La Cruz del Sur (que não conseguiremos visitar). Ele não está certo de que seja essa edição (e acabo por comprar a atual da Seix Barral que, segundo o prefácio de Sábato, preserva a tradução lendária).

Chega O Conde (que ainda não sei que é O Conde). Figura “distinta”, alta, bigode espesso de conde virado para cima, cabelos grisalhos ondulados, óculos impossíveis (enormes, pretos, quadradões e com as lentes sujas), uma capa por cima do terno.
O Conde diz: Bon soirée, grand maître! El Viejo Librero levanta os olhos de si mesmo e parece ser percorrido por uma fagulha, mudando completamente de tom: de uma lentidão modorrenta de fim de domingo a um ânimo jovial e alegre: Hola, maestro!, responde, e começam a conversar em francês.

O Conde fala de uma proposta que recebeu para comprar os cinco volumes do “Cosmos” de Humboldt. Passam ao castellano. O Conde diz que parece um bom negócio, El Viejo Librero concorda (tenho a sensação que uma outra negociação, futura, se arma sutil entre os dois). Segue uma conversa curta, de tom aristocrático — um livro que toma forma e vida ao meu lado. Como inicia, acaba, um raio do tempo no meio do nada.
Adieu, grand maître! Adiós, Conde! Adiós, maestro!

(E não é mais necessário comprar, ou falar, de Gombrowicz ou Ferdydurke — ele acaba de “acontecer”)

sábado

bl ack sa gain st wh ites




sempre a vontade imperativa de organizar, separar, selecionar
inferno na torre racional é o seu oposto, cartas voando chamas por toda a parte
quem indecide, divide, se ramifica e se dilui,
isso não é invasão, esto no es una invasión, pibe

e então os vários escaninhos abertos para guardar os pensamentos
mas tudo se cruza e se engole e se revolve o tempo inteiro
isso é a invasão, esto es una invasión, puto perro
(esto es un atraque)
e sempre a volta à digressão, duzentas mil pontadas de luz dentro da cabeça
escrever aqui ou ali
os escaninhos ficando cada vez mais cheios de música
afogando os ouvidos no deleite que transcende o que deve ser transcendido
transcindido


mas não há promesssa, meu amor
ilusão&torpor

e as novas fotos que guardam o futuro ainda estão cheias de pó
la madre perdida


seres larvais subindo as paredes da pele
a torre invadida, volume máximo, fogo alto
esta é a nossa casa-casca flamejante
babel era o caos e eles perceberam, grita o viajante-defunto
olhos amarelos, um fígado em débito com o corpo


não se fala em eu/s

uma história muito antiga que não acaba
a vida não tem data (tem dimensão)
condensar para reforçar dizem as vozes sussurantes


sentido? bata continência & vá em frente

segue à espreita o vagão-phantomas
do céu ao inferno, da terra ao afundado atalante
o filme enrolado, as fotos veladas, belos olhos presos pra sempre ao passado
a força está aqui, onde sempre esteve, ao alcance de dalila

passeando pela praça com o cão, mão na coleira, mão no bolso
folhas no chão, sapato brilhando, desejo de fumo, jornal embaixo do braço
dentro da galeria em frente à praça, o sorriso da menina que estuda filosofia só pode existir fora do seu próprio tempo
aqui não há nada, diz o motorista de táxi por ela
realmente o futuro está longe da praça para este sorriso que prefere a metafísica à filosofia contemporânea
está longe de si, e é só lá, neste lugar fora de si, que é possível cruzá-lo




domingo

The Bs.As. Sessions Vol. 1: domingo en la feria I

Idiotango

Tentamos o ônibus para la Feria de Santelmo, mas o motorista nos enxota porque, além de demorarmos a subir e fazê-lo pegar o sinal vermelho, não temos moedas trocadas ou la boleta (e nem sabíamos que era para ter). É o favor que os idiotas nos fazem às vezes. Tomamos um táxi, chegamos em 10 minutos, quase o mesmo preço de três passagens de ônibus. O lugar está cheio de gente, turistas para todo lado, brasileños acá e allá. A idéia de comprar uma garrafa antiga para servir a soda que os portenhos tanto usam vai por água abaixo quando percebemos que é a miniatura do Cristo Redentor local.




Paro numa banca de artigos de guerra. Vários bottons nazistas, fascistas, fotos de Hitler. Fetiche infantil e estúpido ou fanatismo racista? Lembro do prato nazi em “Beleza americana”. E também do livro de Goñi sobre o contrabando de nazistas para a Argentina negociado entre Perón e o III Reich em queda. Deixo a banca e seu dono, um velho pequeno de feição intransponível (seria ele um ex-SS? Alguém se torna um ex-SS?), pensando na hipótese de Tardewski sobre o encontro de Kafka e Hitler em Praga e em seu ataque contra Heidegger (o homem que colocou na filosofia alemã a sua touca de dormir kitsch, diz Reger, escreve Bernhard).

terça-feira

The Buenos Aires Sessions Vol.1: la confitería Ideal II

Ambos Mundos

Parado na porta espelhada, na volta del baño, começo a sentir os efeitos da viagem temporal. O tempo: em um dia e meio, a distância da vida cotidiana é absoluta.
Soy un argentino, no soy un argentino, mejor: soy un local.

Ciudad de libro, acá no es un cine, sino una narración (que se va imprimiendo en mi cuerpo), una prosa (con gotas de poesia) — como não produzir tantos grandes e maravillosos escritores? Voltando à mesa percebo o órgão e o viejo músico que lhe dá vida.





Chocolate quente. Fora chove. El viejo Miguel sigue hablando a los chicos. K. está enfeitiçado. Começo a escrever na caderneta — o tempo: em um dia e meio a distância da vida cotidiana é absoluta. Lentamente, sinto que vai me tomando una epifania: el son de la musica del tango – el viejo Miguel com sus estorias – el otro viejo tocando el órgano – la confiteria e su teto clasico – los ojos llenos. Estoy en casa (hasta siempre).

(Uma anotação anterior à viagem: Para mim não é (nunca foi) Paris, e sim Buenos Aires a cidade do imaginário da escrita, a cidade mítica da escrita, o lugar do escritor. Uma genebra no Ambos Mundos.)





Antes, ainda en el baño, penso em Dimitroff Otanos, o russo que foi comprar cigarros e voltou 30 anos depois. Viver uma outra vida, assumir um outro eu guardado, cortar o passado e incorporar outra história. Penso também em Benjamin: mover a ruína, e não ser imobilizado pelo lamento. Ahora es la única hora possible.

No apartamento-base (vizinho à última morada de Macedonio), horas debruçados sobre o livro de Kuitca. Arte é construir realidades. Si yo fuera el invierno mismo.




quinta-feira

The Buenos Aires Sessions Vol. 1: la confitería Ideal

Miguel



En la confitería Ideal, Miguel, el viejo italiano, nos encontra.
Pára ao lado da mesa, segura a bengala e olha fixamente para mim e para K. Sorri um sorriso de mil anos. Abre a mão para K., que retribui e ganha um cumprimento que é quase um golpe. Faz o mesmo comigo, mas não tenho tanta sorte e levo um tapa (afetivo) no nariz. Ele se desculpa e segue sorrindo. E começa a falar como se jamais tivéssemos interrompido nossa conversa ancestral.
No andar de cima há um salão de tango. Embaixo, o café, um pequeno palco, um órgão e outro viejo sentado atrás. Empieza a tocar. Não conseguimos perceber a origem da música.
Miguel diz que esteve na guerra, luchando em Africa, preso, viu de baixo os campos, o sofrimento.
O pé direito gigantesco do café cria uma sensação irreal de desplazamento do que está lá fora, do Rio, do Brasil, de casa.
Estive aqui sempre.
Veio para Buenos Aires há mais de 50 anos, siempre en la Ideal.

quarta-feira

The Buenos Aires Sessions Vol. 1: la viuda del tango perdido


NO HAY BANDA VARIATIONS
(santelmo, la feria, el fuego)





hable de mis hojos, orso, describe la confiteria ideal en su reflejo, reflejo de mi amor por la música, por miguel, el viejo (que lindo fue!), mi viejo italiano, describe lo que si pierde, el tablado, lo que ya no temos, tán pronto, descolorido.



llorando.

el tango ya se va, no me apuntán la cabeza, tira la vida, muerte a la poesía, tengo mi sombrero, y mi muñeca, tengo el salón flotando conmigo, miguel contando la africa e se me escapan los sueños.




no me mires, chico.
no teneía la capacidad de verlos como están ahora, ver a mis ojos.
pagarias el precio de la opacidad ireversible del dolor sin brillo, sin fuerza?

el rostro es mio.

no hay banda, no más.




los ojos flamejantes de la viuda del tango perdido (no se los describe).

domingo

The Buenos Aires Sessions Vol. 1: autonauta

Dia 1: viernes
Táxi de madrugada, chego com Miró ao aeroporto: check-in rápido, café com leite e
pães de queijo na espera. Encontramos K. logo depois. Uma viagem que seria solitária, uma viagem que seria outra viagem, e ainda outra (como o texto) anterior, transformada em uma ação-experiência entre amigos.
Os viajantes somos nós.
Na janela, eu. K. no corredor. Sorte grande: ninguém na poltrona (assento é mais adequado) do meio. Miró algumas filas atrás.
Primeiras conversas sobre “Respiração artificial” com K.: Kafka, Borges e as teorias de Renzi e Tardewski. Miró terminando o “Desonra” (tradução estranha para “Disgrace”, comentamos mais cedo).

Na conexão inesperada em São Paulo, melhor, em San Pablo, falamos os três de Coetzee. A impressionante disciplina do osso, uma narrativa que não cede nunca. A impaciência surge entre a objetividade cortante — ser impaciente, escrever impacientemente, não significa descuidar de cada acorde, de cada vírgula do encadeamento da narrativa.



No avião Gilberto Gil, em má forma, segue escalpelando as dreadlocks de Robert Marley. Depois, sucessivas informações despejadas de forma incompreensível pelo comandante e seus comandados: o espanhol é uma afronta e o inglês, um pastiche do alemão.
Um aviso: as autoridades sanitárias argentinas determinam a esterilização dos passageiros e da aeronave, e, portanto, seremos (des)insetizados (!).
O inseticida é natural, afirma a aeromoça. Ficamos perplexos, e somos realmente submetidos ao contato, bombardeados efetivamente pelo aerosol purificador (natural, dizem, mas fedorento e agressivo como os “artificiais” — índice: a natureza é olorosa e violenta!).
Ouvindo “Speachless”(do K&D Sessions, que será a trilha da viagem), janela aberta: a bandeira argentina no horizonte — céu azul sobre nuvem branca (o nome do quadro).
De Copacabana a Ezeiza, salto no espaço-tempo. Na autopista para o centro, sensação estranha de entrar em outra dimensão, como um percurso intestino interplanetário em direção a outro estômago-urbe, autonauta da cosmopista levado pelo táxi.

quinta-feira

The Buenos Aires Sessions Vol. 1: el humanista Israel Levy

Eu e K. entramos numa pequena loja de bolsas e mochilas. Nas vitrines, vários recortes de jornais e revistas e outros papéis. A loja está fechando. Um senhor (un viejo, otro) que parece ser o dono pergunta sorrindo se queremos ajuda. Respondo que não é necessário, volvemos mañana.
Ele me olha (tenho a sensação de ser lido) e pergunta de onde somos.
Com a resposta, os olhos brilham de uma forma e ele abre um sorriso de esfuziante prazer. Adora o Brasil, los brasileros, la musica brota, la arte brota em Brasil, diz. Tom, Caetano, Milton, Chico, João Gilberto, como no escuchar a Elis Regina?, maravillosa. Pede que fiquemos, quer conversar e nos mostrar algo. Miró fuma um a dez passos, na rua.
Estamos completamente surpresos (e felizes). Perguntamos se não quer se juntar a nós, estamos indo ao El Ruiseñor, aqui ao lado. Tengo mi grupo de trabajo ahorita.


el humanista, por miró/pauperia

Entra uma cliente. Atende a mulher com a filha e escapa inúmeras vezes para nos mostrar os recortes colados nas vitrines e para seguir a conversa. Grandes escritores también. Tengo acá “Memórias do cárcere”, que escritor es Graciliano Ramos. E Machado, Guimarães, Vinícius. Começa a falar de poesia, o poder revolucionário das palavras. Nos vidros, Gabriela Mistral, Drummond, Neruda, Pessoa. E recortes sobre resistência anti-opressão no continente, e na Palestina. A cliente se vai, sorrindo com nossa conversa (será que percebe o poder desse encontro metafísico ou é, para ela, apenas mais um exotismo banal entre un viejo simpatico e tres turistas?).

Ele quer falar sobre seu grupo de trabajo. Vamos ao balcão e ele nos mostra um abaixo-assinado contra o muro que Israel contrói para isolar os palestinos. Me llamo Israel Levy, para que usteds veán que lo que me importa es la humanidad, diz. Ha leído en algún hogar una frase que mi gustó mucho: Un pueblo que oprime otro pueblo no puede ser un pueblo libre. Há duas assinaturas de brasileiros. Sharon es un criminal!, diz, enquanto mostra o material do grupo de trabajo iniciado no Fórum de Porto Alegre. Assinamos.


Es la essencia de la humanidad, la solidariedad, diz Israel (um irmão de Lévinas vendendo mochilas e distribuindo afeto e bondade ao sul do tempo). Enquanto nos despedimos, tentando expressar nossa honra em conhecê-lo, un honor para nosotros, gratidão pelo momento mágico (e que as palavras não serão suficientes para recordar), percebo seus olhos cheios. Um abraço forte em cada um. Já na rua, vejo que esqueci a sacola de livros. Volto, pego os livros, ele me olha, as lágrimas descem pelo rosto jovial del maravilloso viejo Israel. Me emocionarán muchíssimo usteds, chicos, e me dá otro abrazo.
Consigo gravar um trecho das palavras de Israel, da nossa conversa. Tom e freqüência. Um fragmento perdido da bondade e da solidariedade humana.

terça-feira

The Buenos Aires Sessions Vol. 1: no El Rapido

16h42: no El Rapido.
Tres ginebras e una quilmes litro.




Esbarrando no “mundo clássico”: um outro tempo, mágica pura, estamos entrando, estamos dentro do mito criado, e ele está vivo.
O caminho: saindo da Charcas – final da rua – eu e K., uma foto dos Chicos Bestiales contra o muro.

Ginebra tastes like perfume, diz Miró.
El Rapido contém os três pilares da civilização argentina, continua. O tango (foto de Gardel na parede), o futebol (a seleção nos calendários) e os cavalos (as corridas na TV, as fotos do proprietário com os jóqueis acimas de nossas cabeças).
Uma mulher passa por mim e sobe ao baño. Um travesti, corrigem. Volta (é um travesti, realmente, um travesti-estereótipo, e feio). Ao lado do El Rapido está Kim Novak, bar moderninho com a bandeira do arco-íris na janela. Mais tarde, jantando com amigos portenhos, ficamos sabendo que esta é uma área de travestis. Não conseguimos conhecer Kim Novak, siempre cerrado.
Quando o traveco fecha a porta do bar, o esteorótipo masculino flui. Que liguem o ventilador, diz o homem do balcão. Es um viadito, diz outro. Otra quilmes más, pedimos. A conexão feita em cima do preconceito é linguagem universal. Amizade de bar, boteco porteño, otra ginebra. Todos obreros acá. Problema sério nos dentes (falta de) dos amigos. Um trabalha nas corridas, treinou cavalos no Brasil. Falam de futebol, que vão cantar mais tarde, e vai se quedando más tarde e más quilmes (otra más, por favor!) e conversamos, damos risada e o tempo passa (não passa).




Saímos pelas diez, e a cantoria fica para manaña, estamos convidados. Tempo de viagem, sem relógio, sem telefone, sem referência marcada que não as que são constituídas dentro da própria viagem.


segunda-feira

The Buenos Aires Sessions Vol.1: cold turkey

Esquecer para lembrar.
A viagem está no corpo. Impregnada.
Esquecer para lembrar.





Chegamos ao Rio anteontem à noite, uma sexta-feira,
dia estranho para voltar (para onde vivemos).
O fim de semana é de mal-estar e febre.
Abstinência da viagem, cold turkey do outro lugar
(de um outro lugar).





Volto, permaneço.


sábado

The Buenos Aires Sessions Vol.1: wanna be

Uma viagem.




I.
Se dá uma história não sei, mas dá uma viagem. E essa é uma outra viagem, marcada há mais de cinco anos, teimando em adiar a si mesma.
A primeira viagem, dos Invasores de Corpos, sampleada e remixada a partir dos relatos de outros, se perde no trajeto muito longo até a Patagônia (o mais próximo que chegarei será o Banco da Patagonia na Corrientes).

O telegrama de Corto ficou em cima da mesa, a passagem de avião chegou antes e me rendo à minha época. Aqui estou.
Além do mais, não quero contar histórias. A idéia, para mim, é escrever impressões, como digitais que marcam o meu corpo enquanto circulo pela cidade.

A cidade é Buenos Aires (sempre foi).

II.
(Você é um argentino wanna be, uma amiga me disse há tempos.
Qué hacer?, como diz el viejo Santiago no primeiro dia que entramos no El Ruiseñor.
Um tio argentino na família me pareceu desde sempre um elemento de estranheza intrigante na família, uma espécie de possibilidade de transpor lugares e diferenças, atravessá-los, a idéia de que há diferenças mas não fronteiras.
De alguma forma, isso funcionou como um vírus que foi se transformando e ganhando outras formas e cores com o tempo. Ferreti e El Lobo Fischer com a camisa alvinegra, estufando as redes adversárias e a imaginação de um pequeno torcedor de cinco anos. Depois, Doval, do outro lado. A copa de 74 vista no apartamento do tio portenho e da tia (absolutamente brasileira) que depois foi desapropriado para a ampliação do Miguel Couto. O time de 78, clássico no botão, Bertoni, Kempes e Valencia, e Ardilles, Passarella, Tarantini, Fillol.
Depois, bem depois, a literatura e a transformação (para mim) de Buenos Aires em cidade mítica da escrita. Renzi e Steve no Ambos Mundos falando de Macedonio, Arlt, Borges, Sur, Gombrowicz. Y Piglia, Cortázar, Puig, Lamborghini, Aira, Saer.)

III.
Este texto era para ser outro texto, e ainda um outro primeiro. E, no entanto, nunca será nenhum dos três, o texto imaginado nunca será como concebido. É assim que se escreve, é assim que deve ser, ele diz (aquele que escreve diz).



sexta-feira

mapa del viaje II




Em cima da mesa, ao lado das fotografias empoeiradas, as passagens. Reler o telegrama de Corto: viagem de navio pt patagonia pt. Diz que sente falta do Ambos Mundos, das conversas com Renzi e Tardewski cheias de fumaça e genebra.
Pratt não pode vir.

A foto clássica no porta-retrato de moldura metálica que está sobre as passagens. A expressão de Butch é de uma tranqüilidade admirável. É o único que olha na direção da câmera, um sorriso quase que disfarçado nos olhos, os lábios levemente puxados para a direita esticando o bigode fino. Confiança, está seguro e relaxado na cadeira, olha a câmera como olha o futuro, uma longa e ininterrupta viagem para a posteridade: estou pronto, parece dizer. Não há arrogância, o chapéu-coco levemente inclinado para a esquerda, gravata, colete, paletó, corrente do relógio de bolso, tudo conforme. O Kid quer se levantar, a mão sobre a coxa e os ombros armados para a frente revelam uma certa impaciência. Os dois estão sentados, nas pontas, o trio restante no meio. Os ponteiros, no futebol, devem abrir pelas laterais do campo para forçar a defesa a sair da área.

Chatwin chega amanhã. Sempre obcecado pelo nomadismo. Yaweh é um deus do caminho, percebe?, pergunta. É possível um deus que ame os sedentários?

Quando Caim tentou dissimular a morte do irmão, o castigo foi a errância. Talvez a sabedoria de Deus tenha presumido que incorporando o modo de vida de Abel, Caim dissolveria seu rancor no deserto e entenderia que a vida é sagrada. E Caim criou a cidade.

quinta-feira

mapa del viaje I

Um e-mail aos editores com el mapa del viaje:

Fazer uma triangulação entre três personagens e sua relação com a Patagônia, com a Argentina. Os personagens: Bruce Chatwin, Hugo Pratt e Corto Maltese. Todos falecidos (vale para Corto também?).






Chatwin escreveu "In Patagonia", primeiro livro, em 1976. Sempre obcecado pelo movimento nômade. Era porteiro da Sotheby's, tinha um olho (os dois, na verdade) bom pra avaliação, virou o especialista da casa para arte moderna. Depois de um tempo, desenvolveu problema nos olhos, o oftalmologista lhe disse que era incrível e, por mais metafórico que pudesse parecer, o problema acontecia em função da concentração de suas (de Chatwin) retinas em detalhes, hipertrofia?
A Casa oferece uma viagem, o médico disse espaços abertos, ele ouve do gerente: que lugar da Europa você gostaria de descansar os seus olhos em; ele responde: Sudão. O período de viagem ele publica como notas nas “Songlines”. Fica seis meses viajando pela África, não volta para a Sotheby's, começa antropologia em Edimburgo, desiste, escreve para o Daily News resenhas e pequenos artigos sobre nomadismo.
Desde criança Chatwin desenvolveu uma relação fundamental com a Patagônia — o avô tinha uma pele de milodonte, um mamute esbelto da Terra do Fogo, e a pele era, e foi sempre, uma espécie de símbolo da aventura para ele. Um dia envia da Argentina um telegrama ao editor do jornal: gone to patagonia pt. Na mochila, “Viagem à Armênia”, de Mandelstahn.
Uma das linhas condutoras da viagem é checar a trilha do Wild Bunch, de Etta Place, Butch Cassidy e Sundance Kid, que chegaram a ser estanceiros na Patagônia (contrariando a lenda, equivocada, da morte após o assalto na Bolívia, como no filme).

Pratt era italiano. Foi com os pais para a Etiópia aos 15 anos, serviu o exército lá, virou marinheiro e foi parar na Argentina. Morou 15 anos em Buenos Aires e lá começou a fazer quadrinhos sob influência do trabalho de Milton Cannif.
Evolui, ainda bem, e começa a fazer uma sofisticação revolucionária (de forma diferente que Will Eisner) da relação desenho P&B com um texto muito mais literário que o usual, um não vive mais sem o outro, melhor: um não quer viver mais sem o outro.
Cria então, meio sem querer, aquele que será seu alter-ego: Corto Maltese, o marinheiro inoconoclasta, o cavalheiro da fortuna da virada do século xix para o xx, provavelmente o personagem dos quadrinhos que melhor representa o viajante aventureiro romântico. Pratt e Corto funcionam como reflexo um do outro, como as ruínas circulares de Borges.

Corto vai à Argentina em 1924, no encalço do assassinato de Louise Brooks, uma das famosas polacas (como as prostitutas européias traficadas para o sul, a maioria do leste europeu, eram chamadas) da época, sua amiga de Veneza. Em Buenos Aires, sempre ao lado de Fosforito (malandro argentino, milongueiro que poderia ser personagem de Roberto Arlt) tem um encontro com Butch Cassidy, velho conhecido, agora importante homem de negócios e estancieiro.


Quero trabalhar com os textos que eles escreveram, ou foram escritos sobre eles, sobre viagem, especialmente Patagônia e Argentina, dentro da estética da escrita sampler que estou desenvolvendo.
A viagem aqui é geográfica, é narrativa, mas é também um ato simbólico da própria escrita.
No caso da escrita sampler, isso vai um pouco mais longe: a viagem, a escrita como viagem e a viagem como escrita (paroxismo da narração, escrita do corpo, se quisermos ir por aí), sempre viagens refeitas, sampleadas das viagens mitológicas, aventuras referenciais, narrativas fundadoras.
Chatwin rastreando e sampleando os rastros do Wild Bunch, Pratt ficcionalizando a própria trajetória e sampleando, entremeando, contextualizando as aventuras de Corto nos momentos históricos do começo do século xx.
Pensei um fazer um texto bem despretencioso, curto, uma espécie de sobrevôo (com alguns mergulhos) pela Argentina e Patagônia com esses viajantes.
Como diz Renzi, que mais se pode narrar senão viagens ou crimes?

Saludos,
M.

quarta-feira

o procedimento sampler

Pensar o movimento de desfiguração como ato amoroso de interesse. Desfigurar a forma é interrogar a imagem, reinventá-la, uma saída do amor gregário da imagem consensual, do amor fascista; desfigurar como paixão da interpretação. Nessa hipótese,a desfiguração daria espaço à apropriação da forma anterior desconstruída para reformulá-la, refigurá-la, criar uma outra figura. O procedimentro sampler, digo a ele, como uma re-construção do já figurado em busca de uma nova música, um novo tom, um novo corpo escrito possível. Contar as suas memórias como se fossem de outro, contar as outras como se fossem suas. O escritor contemporâneo, afirmo, diz, busca construir uma memória pessoal que sirva, ao mesmo tempo, de ponte com a tradição perdida.

terça-feira

invasores de corpos:admitindo o caos

No começo está o fim.

Não significa que, daqui para a frente, não haverá forma na arte. Significa apenas que haverá uma nova forma, e que essa forma será de um tipo que admitirá o caos, sem tentar dizer que o caos é na verdade outra coisa. Encontrar essa forma: eis a tarefa do artista hoje.

Ponha sua mão na minha testa um momento para me dar coragem.

Cada palavra é um fim e um começo.

Toda ação é um passo dentro do fogo.

segunda-feira

pedro rubro:ungeziefer remix

A Academia espera de mim um relato científico, espera que apresente à audiência uma descrição coerente e factível da experiência. Mais uma vez preciso desenvolver minha mimese estratégica. Não é o que esperam de um símio, um primata? Como cheguei onde cheguei? Como me tornei humano, ou melhor: como me tornei um ser racional? Nada mais fácil do que imitar o homem, foi o que descobri. O que não significa que tenha sido fácil. Na verdade, foi minha única oportunidade de sair, escapar da jaula, foi o que vislumbrei. Há os que morrem nas grades. Fiz o que era esperado de mim como macaco. O meu mérito foi perceber a expectativa e aprender a caracterização primitiva do homem. Poderia ter sido mais sofisticado desde o início, mas não teria sido compreendido, não teria atingido meu intento, não teriam se reconhecido os homens em mim, não aqueles, não os senhores. Hoje, passados os anos, posso me dar o luxo de pequenas ironias que passam como idiossincrasias simiescas, mas que o meu espírito animal de primata se regozija num sorriso macacal interno. Naquela época, no início, meio enjaulado meio encaixotado no navio, essas reflexões não teriam vingado, não havia interlocutores. Não que os haja agora, sem demérito para os senhores, mas, permitam-me dizer, permitam-me a expressão, estou num entre-lugar da existência. Tiro proveito do fato de estar na presença de uma seleta distinta das maiores inteligências do país, como orador, como testemunha vivente, para fazer pequenas digressões e elocubrações tão ao gosto humano. Espero não ser mal compreendido. Não pretendo aqui reproduzir, em outro nível, o meu percurso mimético, até porque o que foi mimese hoje está incorporado. Não poderia, muito provavelmente, voltar a viver na selva africana como vivi um dia, longínquo, por certo; acredito que seria preciso estudar o que é ser macaco como estudei o homem para reproduzir-lhe um espelho monstruoso. Um espelho no qual nenhum dos senhores se enxerga, como não se viram refletidos tampouco os meus companheiros humanos de viagem que me impingiam macaquices e dos quais copiei o modus operandi. Não tenho pares, como dizia. Tenho, isto sim, espaços de interseção em que me comunico. Aqui estou, de fraque, enquanto me aguarda em meus aposentos minha companheira macaca, uma chipanzé semi-amestrada que prefiro não ver durante o dia pois reconheço em seu olhar a loucura do perturbado animal amestrado, e isso só eu reconheço e não posso suportar. No entanto, nunca estou realmente em nenhuma parte — nem lá, com ela, nem aqui, com os senhores. Mas estou vivo, e pensar não é, para mim, uma abstração. Não reproduzo o raciocínio alheio como o fiz com os gestos e o comportamento. Era tão fácil imitar as pessoas. Nos primeiros dias aprendi a cuspir. Cuspimos um na cara do outro; a única diferença era que depois eu lambia a minha e eles não lambiam a deles. Repetir o pensamento dos outros também não me impõe nenhuma dificuldade. O que digo aqui é que penso, ainda que a partir deste espaço solitário, deste entre-lugar, como o chamei, penso, e o faço por mim mesmo. Se há uma coisa que posso dizer que aprendi com a minha experiência na sociedade humana é que pensar pressupõe reflexão, requer um contato do ser consigo mesmo, não é um processo que pode ser copiado como um cuspe. O pensamento é um ato de independência, e não pode ser um mimetismo, pois o sendo deixa de ser pensamento para tornar-se um ato de submissão. No pensamento está a possibilidade da revolução, da insubordinação silenciosa. O tempo está ao lado do pensamento, e as palavras virão quando se fizerem necessárias, assim como os atos. Quando me foi imprescindível falar, falei. Como num passe de mágica disse “alô” e saltei com esse brado dentro da comunidade humana e senti, como um beijo em todo o meu corpo que pingava de suor, o eco: “Ouçam, ele fala!”. E, após um breve interregno de mudez, segui falando até hoje. E segui pensando, refletindo sobre minha condição de ex-macaco humanizado. Quando digo que aprendi que o pensamento, e faço mais um esforço para não usar a palavra raciocínio, cuja raiz ligada à razão e aparentada com a lógica ameaça o pensar com um possível mecanicismo matemático, quando afirmo que do meu período com os homens pude apreender o sentido da relação com o pensamento, não significa dizer que o próprio homem tenha feito isso, ou que todo ser humano tenha a capacidade de refletir sobre a sua capacidade de reflexão. Se assim fosse, poderíamos aqui falar, discorrer orgulhosamente, sobre a faculdade de raciocinar; entretanto, creio que não é o caso, não me levem a mal. Estava na África, em meu habitat, vivendo minha vida de macaco, e no outro segundo estava preso, enjaulado no porão de um navio, cercado de homens nobres em sua função de superiores coletores de espécies (e raças) distintas. Ia beber água com meu bando e fui atingido por dois tiros, capturado desacordado, manco até hoje. Eu escolhi sair. Vejam bem: não fugir, mas sair. Era preciso uma saída para qualquer lugar, e a minha saída foi invadir o ser humano e criar este entre-espaço em que estou e no qual caibo perfeitamente. Mas agora quero invadir o espaço do pensamento humano de outra forma, por dentro estando fora, e por fora estando dentro; quero, e preciso, dar voz a quem não tem, falar por eles. E quando digo falar, não me refiro a tomar-lhes lugar, mas abrir um espaço em sua intenção. Pensar é refletir. E toda reflexão propõe uma ação. Falo no presente, invocando o passado para o futuro: É preciso colocar um fim à opressão e à exploração, onde quer que estas ocorram, e garantir que o princípio moral básico da igualdade de interesses não se restrinja arbitrariamente aos membros da espécie humana, nem, mais particularmente, a determinados membro da espécie humana. É chegada a hora da libertação. Um movimento de libertação é uma exigência de pôr fim ao preconceito e à discriminação baseados numa característica arbitrária, como a raça, o sexo ou a espécie. Um movimento de libertação requer uma expansão de nossos horizontes morais (e intelectuais). As práticas consideradas desde sempre naturais assumem um ar cruel, arcaico e primitivo, porque são resultado de um preconceito injustificável, inaceitável. Falando francamente, meus senhores, sua origem de macaco, até onde tenham atrás de si algo dessa natureza, não pode estar tão distante dos senhores como a minha está distante de mim. Mas ela faz cócegas no calcanhar de qualquer um que caminhe sobre a terra — do pequeno chimpanzé ao grande Aquiles. Que o diga meu primeiro treinador, que abdicou (ou foi abdicado) de suas funções e precisou ser internado tal a intensidade com que a natureza de macaco escapou de mim às cambalhotas e o abalroou, fazendo dele um arremedo de símio. Mas isto é um detalhe. Volto ao meu ponto: quem poderá afirmar com segurança e certa honestidade que nenhuma de suas práticas pode ser legitimamente questionada? É preciso avaliar nossas atitudes a partir do ponto de vista de quem sofre suas conseqüências, e as conseqüências das práticas que decorrem delas. Se os senhores, me desculpem a franqueza, conseguirem realizar essa inusitada transposição mental, pode-se descobrir, nessas atitudes e práticas, um padrão que opera de modo a beneficiar constantemente um mesmo grupo — normalmente o grupo a que cada um dos senhores pertencem, e a que eu, de certa forma, também pertenço agora como monstro — às custas de outro grupo, outra comunidade. Por isso lhes digo: é preciso urgentemente dar início a um movimento de libertação: libertação do oprimido e libertação do opressor. Essa libertação não acontecerá concomitantemente, o que é uma lástima, principalmente para os que virão depois de nós, principalmente para os que virão depois dos senhores, pois um de seus filhos irá acordar certa manhã transformado num inseto — ou, se preferirem a perfeita expressão alemã: acordará transformado num ungeziefer.

domingo

bases para a escrita sampler

nossa natureza está no movimento;
a calma completa é a morte.


I.
A proposta da série “Invasores de corpos” é justamente exercer na escrita a relação de forças que age sobre textos teóricos e literários — e sobre a qual a escrita sampler transita e reflete.
Através da apropriação da expressão “invasores de corpos”, o procedimento é nomeado e executado como filosofia estética.
Uma filosofia e uma estética sampler.


II.
Que novas frentes se abrem? Dos caminhos vislumbrados nos fotogramas "&&&", quais podem ser os que não serão velados quando as imagens forem reveladas?

III.
Pouco antes de escrever estas perguntas, pensando nelas, encontro, me deparo, sou encontrado?, por um pequeno diálogo — uma espécie de epígrafe às avessas.

IV.
— Palavra diferente de qualquer palavra já dita e por isto sempre nova, jamais ouvida: exatamente palavra inaudita e à qual devo no entanto responder.
— Tal seria então minha tarefa: responder a esta palavra que ultrapassa meu entendimento, responder sem tê-la realmente ouvido e responder repetindo-a, fazendo-a falar.
— Nomear o possível, responder ao impossível: eu me lembro que havíamos designado assim os dois centros de gravidade de toda linguagem.
— Esta resposta, esta palavra que começa respondendo e que, neste começo, repete a questão que lhe vem do desconhecido e do estrangeiro, eis o que está no princípio desta responsabilidade, da forma como ela se exprimirá depois, na dura linguagem da exigência: é preciso falar.
Falar sem poder.
Manter a palavra.

V.
Que importa quem fala?



Contém samples de Maurice Blanchot, que trabalha com bases de Emmanuel Lèvinas, e Samuel Beckett.

sábado

invasores de corpos:manifesto sampler [8pp.rmx]

&&& É PRECISO NASCER

Mais que um. É preciso ser sempre mais que um para falar, é preciso que haja várias vozes.

Que importa quem fala?

A verdadeira atividade literária não pode ter a pretensão de desenrolar-se dentro de molduras. A atuação literária significativa só pode instituir-se em rigorosa alternância de agir e escrever.

A crítica tem que falar na língua dos artistas. Pois os conceitos do cenáculo são senhas. E somente nas senhas soa o grito de batalha.

O escritor não diz mais do que pensa (e pensa mais do que diz).

O crítico não é o intérprete de épocas artísticas passadas. O crítico é um estrategista na batalha da literatura.

O leitor-ouvinte está entregue aos seus próprios recursos.


&&& CORTAR O CORDÃO UMBILICAL

Escrever não se aloja em si mesmo.

Não ponho aspas. As palavras são minhas. Não importa quem fala. Sou quem pode dizer o que disse. Fui eu quem escreveu. Agora abro as comportas e deixo que elas, as palavras, as vozes, se espichem, se multipliquem, se fortaleçam. Aglutinação pela dispersão. Ele(s) redige(m), mas sou quem escreve. Um corpo em disponibilidade para si e para o outro.

Todo es de todos, a palavra é coletiva e é anônima.

Nosso prazer não tem sido mais do que o ossário natal do tempo morto. Pensar e escrever novamente como uma violência e um prazer. Ser feliz significa poder tomar consciência de si mesmo sem susto.

É preciso nascer, sair do plasma que cobre os corpos invadidos, romper o cordão umbilical.

Você abre os olhos: sua mãe está ali, deitada sobre a cama. Seu pai segura o cordão umbilical. Você está no mundo. Bem-vindo! Mas você não está devotado apenas ao que o inédito umbigo circunscreve, o corte do cordão umbilical te lança à perda da pureza, estás liberto da origem, estás liberto do mito. Invadir o corpo do mundo, e ser invadido por ele é o que você faz agora (e para sempre).

Que importa quem fala?

A escrita sampler acumula por afeto, pelo que a afeta, tudo aquilo que vê, ouve e experimenta à sua soma.

Apropriar para produzir, e não para reproduzir.
A escrita sampler como uma forma de “dobrar” a matéria, a referência, o sujeito que existe > criar uma nova/outra/diferente subjetivação do texto/música/matéria.

Uma escrita não começa nem conclui, ela se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo.
Anular fim e começo.
A escrita se torna o exercício do eu + 1, do eu somado a outros “eus” que falam – refalando – em seus textos. A escrita sampler esvazia a figura do autor-ego, e seu papel em relação ao discurso, criando um novo jogo de forças e oposições possíveis.

A linguagem não pode mais se deixar prender à teatralidade filosófica do seu objeto. Deve se tornar, também ela, uma atentado por fascinação.

Não significa que, daqui para a frente, não haverá forma na arte. Significa apenas que haverá uma nova forma, e que essa forma será de um tipo que admitirá o caos, sem tentar dizer que o caos é na verdade outra coisa. Encontrar uma forma que acomode a desordem: eis a tarefa do artista hoje.
As possibilidades analíticas precisam convergir, e não se digladiar.



&&& A PUREZA É UM MITO

A entropia da originalidade.
Entropia: Medida da quantidade de desordem de um sistema.
Desordem da pureza, desordem do mito.

A questão é: que tipo de pirata queremos ser? Bucaneiros sanguinários ou invasores de corpos, manipuladores edukators do que está aí e aqui, dentro e fora? Podemos ser sombras esperando a hora e a esquina adequada para invadirmos o corpo mais interessante, esperando a quebrada exata para roubarmos por um instante o seu doce mais profundo. Mas para que rimar amor com dor?

Invado porque todas as casas são minhas, todos os eus me pertencem, estou em você porque você sou eu e eu sou você, mi casa su casa. Unbreakable porque a circularidade não tem portas nem grades. A idéia não é ficar, é mover. Podemos ser corpos materiais que se duplicam num abraço, podemos ser como a última frase de João XXIII: multiply and difuse. Podemos ser camaleões e usar outros como disfarce, mas o sentido não é esse: o sentido é ATRAVESSAR, invadir e sair outro, e se você também puder ser outro depois da invasão, depois de ser trespassado, bem-vindo, esse é o mundo sampler!

A única maneira de defender a língua é atacá-la. Cada escritor é obrigado a fabricar para si sua língua.

Escrever é um esforço inútil de esquecer o que está escrito (nisto nunca seremos suficientemente borgeanos). Por isso, em literatura os roubos são como as recordações: nunca totalmente deliberados, nunca demasiadamente inocentes. As relações de propriedade estão excluídas da linguagem: podemos usar as palavras como se fossem nossas, fazê-las dizer o que queremos dizer.

Na primeira edição de “Lavoura arcaica” há uma nota em que o leitor é apresentado à escrita sampler. A partir da segunda edição o escritor retira o informe e apaga os rastros dos textos sampleados. O que é o pensamento, a filosofia, a escrita senão uma enorme e contínua remixagem?

Uma fábula sampler não tem moral:
1. Em Praga, no Café Arcos, na mesa de Piglia, sentado, Kafka, o solitário. Fevereiro de 1910. Está diante de Adolf, o pintor, um falso Tittorelli e quase onírico.
2. Na mesa de Thomas Bernhard, profecias: Heidegger é o pequeno burguês da filosofia alemã. O homem que colocou na filosofia alemã a sua touca de dormir kitsch.
3. Na mesa de Kafka, com seu estilo, que agora conhecemos bem, o insignificante e pulguento pequeno-burguês austríaco que vive semiclandestino em Praga porque é um desertor.
4. Aquela touca de dormir kitsch que Heidegger sempre usou, em todas as ocasiões.
5. Aquele artista fracassado que ganha a vida pintando cartões-postais, desenvolve, diante de quem ainda não é, mas que já começa a ser Franz Kafka, seus sonhos fanhosos, desmedidos, nos quais entrevê sua transformação no Führer, no Chefe, no Senhor absoluto de milhões de homens, criados, escravos, insetos submetidos a seu domínio.
6. Heidegger é o filósofo da pantufa e da touca de dormir dos alemães, nada mais, diz Reger na mesa ao lado.

O filho interfere na publicação da obra de Graciliano Ramos. A sua biografia o apresenta como escritor, o seu comportamento o coloca como tutor, censor, interventor.
A irmã de Nietzsche editando os escritos do irmão depois da morte dele e a partir de uma moral pequeno-burguesa que ela intuía dividir com a sociedade e que circulava por suas artérias.


&&& DESAPROPRIAÇÃO E COMBATE

A escrita sampler vive numa cidade de senhas e mora em um bairro de vocábulos conjurados e irmanados, onde cada ruela adota cores e cada palavra tem por eco um grito de batalha.

Reconheço o que sou, e se também sou e estou no que reconheço, porque não seria meu também esse espaço? A propriedade não existe, tudo é de todos — esse é o horizonte utópico de Proudhon. Mas ela é imposta e existe de fato, então o sampler-combate desapropria, desorienta, ultrapassa, surrupia, furta. Mão leve, mão grande, falsifica, usando as armas que estão para nós, e à nossa espreita — o que é roubar um banco comparado a fundar um?

A astúcia do mentiroso, a apropriação descarada do corpo-fala do outro, comer o antropófago abrindo um jogo permanente e caótico de redirecionamento de vozes.

Este texto não é meu. Para uso de todos, em qualquer circunstância.

Pensamento do risco sampler: Escrever e ler sempre através do estatuto do Ataque, Perigo & Ritmo.

O senhor Keuner tem o vício de pensar de modo frio e incorruptível. Para que serve isso?

Não emprego o sampler “livremente”; posso fazê-lo como educador, político, organizador. Não existe critica à minha atuação literária — plagiador, perturbador, sabotador — que eu não incorporaria como título de honra à minha atuação.

Escrever des/organizando o espaço existente em direção a um novo espaço em permanente constituição. Escrevemos dentro de um sistema. Atravessemos.

Quem nada cede à língua, nada cede à causa, quem não é capaz de tomar partido tem de calar-se.

O “e” do sampling não é nunca uma sobreposição (pelo menos não total, não quer esconder nem tapar a “origem”). É muito mais uma justaposição, uma re-posição”, ou ainda: um alargamento do espaço. Esse é o “poder” da escrita sampler, sendo “poder” o que determina a ocupação de espaços. O sampling quer invadir, e invade, este espaço, sem contudo bloquear os outros corpos, ao contrário, ele se transforma neles também.

Tornar seu o que é de outro, e nesse momento em que me aproprio, desaproprio o que é de outro e rejeito a minha posse sobre ele — não uma pilhagem, uma libertação (que pode ocorrer através da pilhagem). Desapropriação — carta de alforria que é instaurada no primeiro ato e permance legislando para os que a seguirem.

AVISO AOS NAVEGANTES:
1. Os piratas não têm garantia nem procedência.
2. Nada pior do que esta obrigação da pesquisa, da referência e da documentação que se instalou no campo do pensamento, e que é o equivalente mental e obssessional da higiene.
3. Os piratas trabalham sem armaduras de qualquer espécie e sem querer saber nada sobre higiene literária.
4. Os piratas invadem e incorporam o mundo regrado das Letras, o mundo asséptico da Academia, e desaparecem e se camuflam na hora da fiscalização da Vigilância Literária.


&&& UMA INVASÃO E UMA BATIDA DEPOIS

A base para uma teoria possível do procedimento sampler na literatura invoca Hermes, o mito trans, o exu-radar que capta as transmissões e as interferências na encruzilhada dos mundos.

O procedimento sampler é fundado na forma de arte mais ancestral: a reutilização, o reaproveitamento, a releitura. O plágio é a forma mais pobre de admiração. Pierre Menard é a alegoria perfeita da esterilidade da cópia.

A escrita sampler é escritura-leitura. Todo escritor é leitor. O ato da escrita não se descola do ato de ler, nunca.

Não é citação. A citação hierarquiza conhecimentos e cria uma relação de referencialidade. A escrita sampler não hierarquiza, mas sim incorpora, reinventa.
Atravessando a bricolagem: o bricoleur trabalha com materiais fragmentados. O engenheiro trabalha a partir de matéria-prima. A escrita sampler pega o bricoleur pela mão e o apresenta ao engenheiro. Uma bricolagem engenhosa.

O sampling não trabalha com princípios morais: mexe, manobra, manipula, inventa a história do outro, o outro, inventa a si mesmo.

Não é imitação. O que se imita é desde sempre uma cópia. Os sampleadores não imitam, subvertem, trabalham e transformam.

Atravessando a menipéia: A palavra não teme ser difamada. Ela se emancipa de valores pressupostos; sem distinguir vício de virtude, e sem se distinguir deles, considera-os como domínio próprio, como uma de suas criações.

Leio e liberto. Deixo de ser eu e navego na dispersão.

É preciso arrancar de si a sua própria ultrapassagem; compreender que a linguagem — o presente das línguas que Iahweh soprou na boca de Adão — tem uma vitalidade rebelde e desobediente.

Ao invés da metáfora do caçador na selva ou da tauromaquia, o atravessador de informação, uma antena da palavra clandestina, nunca uma antena da raça, escritor quebra-lei perdido no coração da grande babilônia, contrabandista de palavras sem papel.

Em literatura, os roubos, assim como as recordações, nunca são inocentes. A verdadeira história da literatura é uma história de ladrões.


&&& A POTÊNCIA DO FRAGMENTO X O DELEITE ESTÉRIL DA RUÍNA

O livro deve se fracionar à imagem da desaceleração das situações de choque. Deve fraturar-se à imagem dos estilhaços do fotograma. Deve enrolar-se sobre si mesmo como a serpente sobre as colinas do céu. Deve derrubar todas as figuras de estilo. Deve apagar-se na leitura. Deve rir em seu sono. Deve revirar-se em seu túmulo.

E ainda assim, cada sampling, cada fragmento é um comentário, pois é uma escolha, um recorte, uma associação, uma afinidade.

Pensar na importância do fragmento como potência não-totalizadora.
A totalização é o fechamento, opera dentro de uma dimensão de falta, de perda, de tentar recuperar o que se perdeu, ou nunca existiu. O fragmento, por sua vez, é a ruína que não se quer reconstruir para que volte a ser o que foi uma vez. A dimensão do fragmento é o suplemento, e não o complemento. O que se busca é a possibilidade de um “vir a ser”, pois a potência está no que se constrói a partir dos restos, com os olhos abertos para frente, e não para a imagem apagada que está na origem da ruína e na memória saudosista. Construir de novo o imperfeito, o passado traumático, a utopia que se perdeu ou retomar a ruína com o corpo do presente, fazê-la viver e transformá-la numa outra coisa, numa terceira instância?
Nascemos com os mortos.


&&& A ESCRITA COMO MÚSICA

As palavras se movem, a música se move.

A base da escrita sampler está calcada na idéia de que literatura é movimento, de que a literatura está em movimento contínuo, em relação de interferência e reflexão permanente de vida e do seu tempo. Tradição e memória estão inscritas em determinado momento histórico mas estão “acontecendo” agora, no instante da escrita.

A literatura é, a música é. Sou, logo não serei mais, apenas outro remix de deus perdido na espécie, solto no ar, flutuando no texto do homem, fluindo no som da música que não retorna, porque é eternamente, é.

Um novo procedimento, que não é novo. Uma nova estética, que não é propriamente nova. Uma nova possibilidade, que nova também não é. Mas, sim, um ânimo novo, um novo ar, uma nova respiração, não mais artificial, fora dos aparelhos da morte. Conectado mas desligado, antenado mas descorporativado, incorporado mas desenraizado, ativado mas des-hierarquizado.

A linguagem não indica o sentido, ela está no lugar do sentido.
Escrita e música se movimentam em temporalidades simultâneas num fluxo fragmentado e sensorial constante.

Não há corpos intactos para a escrita sampler.


&&& O FIM É O MEIO

1. Esqueça o que foi dito, o que já está escrito. Esqueça para lembrar.
2. Escrever é esquecer.
3. Esse texto não é meu, não tem posse nem origem.
4. É preciso aprender todos os movimentos para esquecê-los. A música toca sozinha, através (de mim).


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Falamos através, com e a partir de irmãos de espírito, invasores de corpos também invadidos aqui e sempre: Walter Benjamin, Ricardo Piglia, Helio Oiticica, Jorge Luis Borges, Silviano Santiago, DJ Shadow, Samuel Beckett, Gilles Deleuze, Friedrich Nietzsche, Thomas Bernhard, Fernando Pessoa, Artur Miró & Matafina, Glauber Rocha, Antonin Artaud, Bruce Chatwin, T.S. Eliot, Franz Kafka.

INSPIRAÇÃO: todos os artistas sampleados pela escrita sampler — essa é a homenagem literária suprema, não importa o que digam os seus advogados.

Além dos já citados, esta invasão de corpos contém samples de: Ana Paula Kiffer, Artur Omar, Bertolt Brecht, Claude Lévi-Strauss, Eneida Maria de Souza, Hans Ulrich Gumbrecht, Jacques Derrida, Jacques Rancière, Jean Baudrillard, Jean-François Lyotard, J.M. Coetzee, Karl Kraus, Marília Rothier Cardoso, Michel de Certeau, Michel Foucault, Michel Schneider, Pierre Joseph Proudhon.


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Nossa natureza está no movimento; a calma completa é a morte.
Este texto não acaba aqui.


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Produzido por:
Mauro Gaspar Filho & Frederico Oliveira,
aka matafina & artur miró


Safeganistão/Dar es Salaam-Cabana. Março, 2005.

sexta-feira

desmanchar as relações estáveis

Rancière diz, ele me diz, que a impossibilidade de delimitação entre uma noção comum e o conceito específico de uma coisa definida não é um defeito atribuível às imperfeições da língua ou atraso do conceito. “Literatura” é um desses nomes flutuantes que resistem à redução nominalista, um desses conceitos transversais que têm a propriedade de desmanchar as relações estáveis entre nomes, idéias e coisas e, junto com elas, as delimitações organizadas entre as artes, os saberes ou os modos do discurso. “Literatura” pertence a essa delimitação e a essa guerra da escrita onde fazem e se desfazem as relações entre a ordem do discurso e a ordem dos estados.

A literatura é, sem meias palavras (ainda bem, porque, no fundo, o que são meias-palavras, ou palavras-meias usadas para o conforto?), aquilo (um dos aquilos) que pode mover as relações, e pode nos mover.

notas sobre a escrita sampler I

18 de janeiro de 2005

Piglia & O “diário de um louco”:
A homenagem, evidente, a Joyce tem uma outra dimensão. Joyce é aquele que representa a experimentação pura da linguagem (daí o texto falar de lingüística) e quem representa o caráter incontrolável da língua, da palavra, do relato (Steve?).
> A ilha de Finnegan, Cidade ausente, o Diário de um louco, Dublin, são todos espaços utópicos da linguagem e da literatura.

[A ilha (a ilha de Finnegan) equivale à ilha de Morus – “utopia”]


16 de fevereiro

O sampling (a teoria da literatura sampler) de Piglia como um instrumento de sua postura como crítico e teórico (além de ferramenta do Laboratório).
A rasura e o apagamento das marcas de autoria são a versão pós-moderna da antropofagia, a usurpação, a desapropriação e a apropriação do discurso do/de outro para construir o seu.
Técnica/procedimento para a re-atualização da literatura menor, uma literatura “pirata”, melhor: uma literatura pirata que devora e reformula para se expressar.
Uma literatura que é política. O sampling é um ato político (para a literatura menor, e no procedimento estético).